Na saída do estacionamento da Assembleia da República amontoam-se duas centenas de estivadores, frente a um cordão de polícias de intervenção. Cara a cara estão homens diferentes, com algumas coisas em comum: um ar duro de quem não está para brincadeiras e o facto de estivadores e polícias serem duas das profissões com maior taxa de sindicalização do país.
“Os polícias estão cá fora, os ladrões estão lá dentro”, berram em plenos pulmões os homens dos portos. De vez em quando, rebentam petardos, uma espécie de brincadeira registada das gentes do porto. No parlamento tinha sido votado horas antes o Orçamento do Estado. A discussão tinha sido prudentemente antecipada, a presidente da Assembleia da República e os deputados da maioria tinham prescindido da hora de almoço, coisa raramente vista por aquelas bandas, para poderem encerrar os trabalhos antes que chegassem os manifestantes. Bem podiam os estivadores bloquear a saída dos carros do parque automóvel da casa da democracia que os representantes do povo já se tinham escapulido a grande velocidade. Nem todos, o deputado comunista Miguel Tiago ironizava com a situação: “Os deputados da maioria, PSD e CDS, estavam cheios de pressa, eu é que fiquei com a moto no estacionamento e agora vou ter de ir de camioneta para Setúbal”, ria-se. A animação na rua continuava grande, estas dezenas de homens com coletes em que se podia ler palavras como “don’t fuck my job”, alternavam palavras de ordem menos respeitosas, para outras ainda menos educadas: “5 mil euros ganha a tua mãe, ó Passos”, gritavam alguns estivadores, enquanto um acrescentava em surdina: “E nas noites más.”
António Mariano, um dos mais velhos estivadores presentes, justificava: “Os mais novos estão revoltados com a campanha contra os estivadores a dizer que ganhamos 5000 euros brutos, é totalmente mentira.” Tira da mochila, carregada de papéis, um artigo de Alan Stoleroff, professor no ISCTE, em que se defende: “Um trabalhador da mais alta categoria da carreira – superintendente – poderia trabalhar 16 horas por dia, durante 22 dias seguidos, e mais oito horas por dia todos os sábados e domingos do mês para ganhar até 5685, 02 euros brutos (incluindo o subsídio de refeição)”. Um horário praticamente impossível de fazer e sobreviver, pelo menos com vida familiar, garante o estivador António Mariano que está no topo da carreira, depois de 33 anos a trabalhar. “O facto é que para lá chegar é preciso um regime de trabalho brutal que implicasse viver apenas para o trabalho”, conclui o académico do ISCTE no artigo. Da funda mochila sai mais um papel com a tabela salarial dos estivadores do Porto de Lisboa, que vai dos 872, 73 euros de salário base de um trabalhador no início da carreira até aos 1939,41 euros brutos do Superintendente do Porto.
Quando Mariano entrou na profissão o trabalho era muito diferente, em Julho de 1979, trabalhava ao dia. Recebia no fim da jornada de trabalho e não tinha nenhuma garantia de que voltaria a trabalhar no dia seguinte. “Quando não trabalhava ia para casa ou para o cinema, se ainda tivesse o dinheiro do dia de ontem”, recorda-se. “Agora os patrões e o governo pretendem voltar a transformar-nos todos em trabalhadores precários. Com a agravante que nos tempos antigos o sindicato distribuía o trabalho entre todos, agora vão ser os patrões a decidir. Quem levantar a cabeça vai para a rua”, garante.
Passam pouco das 17h do dia 31 de Outubro, junto ao parlamento, e desde o início da tarde aglomeram-se duas a três mil pessoas, entre agricultores da CNA (Confederação Nacional da Agricultura), indignados, gente dos anónimos e activistas de vários movimentos sociais. A caminho vem uma manifestação da CGTP com cerca de 7 mil pessoas. À frente do desfile vão cinco polícias que, quando vêem os estivadores no final da rua de São Bento, param e colocam as viseiras. Os estivadores cantam a plenos pulmões: “Somos nós, os estivadores em Portugal, somos nós.” Os manifestantes olham receosos para aquele comité de recepção demasiado animado.
Avança para a frente do cortejo António Torrado, o responsável pela segurança da central. Os estivadores quebram o impasse: e começam a gritar: “Venham, venham, venham.” Nem assim, a coisa se decide. Já meio divertidos, os homens dos portos, membros de um sindicato que não está em nenhuma confederação, começam a gritar: “CGTP, unidade sindical.”
O cortejo arranca então lentamente, perante o coro que continua a cantar convidativamente, “CGTP, unidade sindical”. Acompanham o primeiro carro de som da central sindical, duas jovens e bonitas sindicalistas, com os braços pejados com post-its com aparentes recados. Os estivadores começam a alternar o “CGTP, unidade sindical”, com a música pimba popularizada por Herman José, “és tão boa”. As raparigas riem-se e o desfile chega a bom porto.
Durante o comício que se segue, os estivadores vão avançando para junto das grades. Vai escurecendo, os mais jovens vão retirando os coletes que os identificam. Alguns tapam a cara. Ouvem, barulhentos, a intervenção do secretário-geral da CGTP, Arménio Carlos. No fim do comício, seguem-se os vário hinos. Não cantam o hino da central, alguns levantam o punho e entoam a Internacional. Quando toca o hino nacional é o histerismo nos trabalhadores mais jovens, entoam-no a plenos pulmões, três ou quatro estendem as mãos, numa saudação que está demasiadas vezes nas claques de futebol e que evoca imagens mais extremistas. Alguns estivadores justificam: “Há muito jovens das claques, mas aqui não somos do partido de direita ou de esquerda, somos só estivadores.” Os elementos da CGTP vão saindo do recinto, e de repente as grades são derrubadas à direita pelos estivadores, à esquerda por jovens libertários. Os polícias de intervenção descem em formação e colocam-se numa fila de dois no início da escadaria: o primeiro empunha o escudo para avançar e empurrar, o segundo está lá para bater. Estão organizados para carregar. Por detrás, circula um oficial que vai dando a ordem para os polícias se manterem firmes. Começam a cair petardos, os homens nem pestanejam. Durante horas ficarão assim, até que são rendidos pelos colegas. A noite vai ser longa.
Os mais novos ficam à frente. Um estivador mais velho, nos seus 30 e poucos anos, interpela Mariano: “Se queres ser alguém tens de conseguir subir estas escadas pelo meio destes gajos [os polícias] e entrar ali [no parlamento].” Pergunto-lhe o que muda se o conseguir fazer. Olha para mim, com desprezo, e pergunta-me quem sou. “Jornalista”, respondo. “Tu não és capaz, mas eu sou homem para isso. Servi a bandeira desde os 17 anos. Agora apetece-me cagar para ela, mas sou capaz de passar estes gajos e lá ir acima”, proclama ameaçador. Do meio do nada surge um sofá velho a arder e uma fogueira improvisada para delírio dos fotógrafos e operadores de câmara: no manifestódromo de São Bento, está, a par do derrube das grades, como o top para fotografar e filmar. No entanto, a noite reserva--nos ainda uma novidade: um grupo de jovens estivadores acaba a jornada a mostrar o rabo aos polícias de intervenção.
O DIA COMEÇOU NO CAIS DO SODRÉ Muitas horas antes começaram a chegar aos cafés da zona. Punham a conversa em dia, estes trabalhadores que se vêem como um grupo especial. “Temos a paixão pela estiva. A nossa profissão não nos deixa indiferentes. A forma como trabalhamos, os riscos que corremos juntos, o escritório especial que temos ao ar livre vendo o Tejo, tudo é especial. Passamos às vezes duas horas com a família e 16 horas, por dia, com os colegas. Por isso somos muito unidos”, garante Sérgio Sousa com uma máquina a tiracolo. Este estivador “acumula” com o trabalho a função de ser uma espécie de fotógrafo oficial das manifestações. “Tirei um curso de fotografia e há mais de um ano que vou acompanhando a nossa luta.”
Na praça, vão-se juntando às dezenas. Os mais novos de cabelo rapado à escovinha e de roupas garridas, os mais velhos mais tradicionais. Todos dizem estar aqui para defender o seu emprego. Às 14 horas arranca o desfile, sobe uma paralela à rua do Alecrim, porque o primeiro objectivo é chegar ao Ministério da Economia, na rua da Horta Seca, onde trabalha o secretário de Estado dos Transportes, Sérgio Monteiro. Os turistas vêem com curiosidade a passagem apressada destes homens que vão entoando canções e palavras de ordem. Como se de um único homem se tratasse, param à frente do Ministério da Economia. Os mais jovens começam a entoar divertidos: “Invasão, invasão.” O polícia mantém-se firme na porta que os seguranças fecham assustados. A pequena e aguerrida multidão grita: “Sai da toca, Sérgio, sai da toca.” Ao meu lado um dos jovens avisa: “Quando os robocops chegarem a gente arranca.” Chegam mais três polícias. E sai do ministério um polícia à paisana que vai comunicando por rádio. Dez minutos depois aparece uma carrinha das Equipas de Intervenção Rápida, os estivadores arrancam cantando: “Somos estivadores com muito orgulho e com muito amor.” Há uma troca de mimos com os agentes, alguns dão umas pancadas na carrinha da polícia que se encontra apenas com um elemento. António Mariano corre a serenar os ânimos. O paisano pergunta-lhe: “Para onde é que vocês vão? Sabem que têm de comunicar o vosso trajecto.” Mariano responde seco: “Vocês sabem perfeitamente para onde a gente vai”, e arranca. O desfile desce, divertido, a Calçada do Combro e vira à direita entrando por ruelas de sentido proibido, obrigando a carrinha da polícia a dar algumas voltas. É por uma escadaria que estes 200 homens atingem São Bento.
Durante as horas que se seguem, as conversas multiplicam-se. Um estivador do Barreiro acerca-se dos mais velhos, Mário Fernandes e António Mariano, queixa-se que anda a perder muito cabelo e pêlo. Teme que seja por causa dos materiais radioactivos que por vezes estão nos barcos.
Pergunto-lhe se não verificam antes a carga e responde-me que é um escândalo: “As cargas só são verificadas depois de nós as manusearmos, e já na Siderurgia Nacional. O cúmulo é que circulam pelo Barreiro e junto a escolas sem nenhum cuidado”, denuncia. Pede-me para não ser identificado, “somos poucos lá com o meu nome e não quero problemas, já me basta os de saúde”.
Mário Fernandes diz-me que esta falta de cuidado com a saúde dos trabalhadores não é caso único. Muitas empresas têm as máquinas todas com o aparelho que assinala a velocidade do vento desligado. “Este aparelho tem a função de parar a máquina quando o vento atinge uma determinada velocidade que põe em causa a segurança do operador. Como por milagre, todos estes aparelhos estão desligados. Assim, as máquinas nunca param, mesmo quando ficamos em risco”, diz.
VIDA DE ESTIVADOR Falo com cinco estivadores. Ivo Moura, com 29 anos, o mais novo do grupo, conta-nos de uma paixão por um trabalho duro com a camaradagem dos colegas. No primeiro dia de trabalho, escapou por milagre à morte: dois contentores deslizaram e ele só teve tempo de saltar. Ficou quatro meses de cadeira de rodas. Já salvou camaradas de morrer. “Dizem que a gente ganha demais, mas às vezes dava vontade de pagar a alguém para fazer o nosso trabalho. Fazemo-lo ao frio, ao vento, às vezes doentes com máquinas perigosas ao pés com contentores a voar por cima de nós. Só por vergonha é que não choramos”, conta.
O Vasco confirma. Com 39 anos teve as pernas atingidas por uma carga: “Estava a trabalhar há mais de 12 horas, cansado, quando escutei um barulho, era uma carga que não estava devidamente escorada que me partiu as pernas.” A maior parte dos acidentes de trabalho dá-se por excesso de trabalho, garante Mário Fernandes: “Ser obrigado a trabalhar 12, 16 ou 24 horas seguidas não dá saúde a ninguém. Preferia ganhar menos e haver mais estivadores no porto. Os patrões é que não o querem.” O fotógrafo do movimento, Sérgio Sousa confirma: “Tenho a minha estatística pessoal. Trabalho nos portos há 13 anos e vi morrer seis camaradas ao pé de mim.” Pergunto-lhe se acham que vão ganhar alguma coisa com as greves e a luta. Responde-me com um sorriso: “Como dizia um cartaz, a única luta que não se ganha é aquela em que não se combate.”
No mesmo dia em que falamos, os estivadores juntam-se à manifestação nacional de polícias, sob o olhar curioso dos agentes. Perto deles, estão activistas dos indignados, gente com máscaras dos Anonymous. Mais atrás, um elemento da DCCB (Direcção Central de Combate ao Banditismo) com uma camisola do Che Guevara. Um autêntico circo. Um dos organizadores confidencia-me que o comando tinha-lhes dito que ia “infiltrar” 40 homens na manifestação, ao que os sindicalistas teriam retorquido, “óptimo quanto mais gente na manifestação melhor”. Aparece um dos sindicalistas da polícia junto aos estivadores, diz-lhes que são bem-vindos, mas que a manifestação se quer pacífica. Quando os mais de cinco mil polícias chegam a São Bento, gritam: “Invasão, invasão” e tentam derrubar as grades. Há coisas que não mudam com os manifestantes, deve ser do ar que se respira.
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