9 de dezembro de 2012

I’AM A DOCKER – Oliveira Dias

Escrever sobre o Porto de Lisboa é algo que me suscita sentimentos muito fortes, fruto de uma vivência como trabalhador numa operadora portuária (Sonatra, Socarpor e Listráfego), e na qual ingressei em 1981.
Está bem de ver que a motivação para este tema surgiu da circunstância da chamada greve dos “estivadores” em Portugal. E se o temo “estivadores” está entre parêntesis isso deve-se a uma confusão, derivada de uma generalização por efeito de halo.
Para se perceber o quadro, é necessário recuar no tempo, até ao ano de 1981, altura em que pela mão do meu pai (uma cunha claro) ingressei no quadro da SONATRA, operadora portuária no domínio de carga e descarga de navios, em Lisboa.
O meu pai era trabalhador portuário há já muitos anos, tendo iniciado na saudosa CNN – Companhia Nacional de Navegação. Tenho a imagem da minha mãe que, comigo e o meu irmão, crianças, levava o almoço ao meu Pai, e muitas vezes o jantar, porque, sendo ele manobrador (manobrava empilhadores), não raras vezes tinha de comer na própria máquina, o mais rapidamente possível porque o trabalho não parava. O ritmo alucinante de “non Stop” foi regra durante muitos anos.
A ausência de um pai agarrado ás máquinas para prover o sustento da família, a imagem dos empilhadores que me empolgava, o roncar dos motores diesel, as movimentações na “prumada” (no cais), o vocabulário vernáculo daquela gente, rude, “faca na liga” e “canhão” ou “boca negra” na cintura, os navios enormes, pretos, cuja dimensão era até onde a vista de uma criança alcançava, etc, tudo isso era o Porto de Lisboa para mim.

O trabalhador portuário era, pois, um homem talhado na forja de uma vida dura, rude, violenta também, onde as condições de trabalho era daquelas que a incerteza de auferir uns cobres era diária, sem garantias, para quem não era do quadro, e mesmo estes com a espada de “Damôcles” sobre a sua cabeça – á mínima desobediência o caminho era a rua.
Porém, uma característica, que ainda hoje se identifica facilmente nos Dokers, conduziu a uma união invulgar entre aquelas que na altura eram as 3 classes de trabalhadores portuários – Estivadores (aqueles que acondicionam a carga a bordo dos navios, nos porões para ser içada para o exterior), Tráfego (aqueles que executam tarefas semelhantes ás dos estivadores mas no cais, fora do navio portanto), Conferentes (uma espécie de mangas de alpaca a quem competia conferir a mercadoria retirada do navio ou a embarcar no navio). Só estes eram portuários, todas as outras profissões portuárias ficavam, fora desta classificação.
Essa união classista deu uma força enorme aos respectivos sindicatos. Então as coisas evoluíram vertiginosamente em matéria de direitos, privilégios e até mordomias.
De tal modo que ser portuário era sinónimo de regalias exclusivas, ainda que o trabalho na prumada continuasse a ser duro.
O meu pai, manobrador, e os demais colegas de profissão pertenciam ao sindicato dos motoristas, e vastas vezes o Director de Recursos humanos da empresa lhes respondia, quando reclamavam de qualquer coisa “vocês não são portuários … aguentem-se”.
Numa altura em que a Ditadura oprimia o povo com a sua polícia política, e os “bufos” o seu principal meio de recolha e informações sobre os “comunas” nome com que eram conhecidos todos quantos fossem mais afoitos na reclamação por melhores condições de trabalho, o meu pai juntamente com outros dois colegas, inconformados com a situação, encetaram diligências, muito discretas junto do Ministério do Trabalho, no sentido de conseguirem a integração da classe dos Manobradores de Empilhadores. Tudo ás escondidas das chefias, e assegurando o trabalho com recurso a prolongamentos de horas, para compensar o tempo dispendido nos corredores da praça do comercio. O espectro da polícia política lhes bater á porta pairou sempre sobre eles.
A verdade é que aí cerca de um mês antes a 18 de Abril de 1974, foi oficial e legalmente incorporada a classe dos manobradores de empilhadores, na cobiçada classificação dos trabalhadores portuários, na classe do Tráfego.
Isto numa altura em que pretender ser-se sindicalista, delegado sindical, dirigente sindical ou simplesmente membro de uma comissão de trabalhadores era Caxias como destino certo. Não era com o hoje, em que a actividade sindical tem uma protecção fora do comum para o seu exercício.
A partir de então os manobradores passaram a responder ao Director de Recursos Humanos, quando ele quase implorava alguma condescendência face a determinadas reivindicações “ somos portuários … aguente-se”. Foi o concretizar do velho ditado “ele há mais marés que marinheiros”.
Tenho bem presente que nessa época, depois do 25 de Abril, a coisa funcionava assim: os empregadores pagavam os salários, dos portuários, mas quem dava as ordens eram os sindicatos. Iam ao ponto de decidirem greves, sem apresentar o obrigatório pré-aviso, bastando que o encarregado-geral, ou superintendente, ordenasse “pára o navio, carago, porra, pá”. E o navio parava, e a factura de custos para a agência do navio começava logo a contar por cada minuto que passava. E resultava porque as administrações das empresas operadoras portuárias cediam quase de imediato á reivindicação do momento.
Num terno de trabalho (equipa) onde habitualmente 2 homens seriam suficientes, o sindicato impunha, 4 ou 6 quando não 8 homens, só porque sim. E as operadoras tinham de lhes pagar. Estes homens não eram do quadro pertenciam a uma entidade portuária que os fornecia o CCTPL, e que era controlada pelos 3 sindicatos. Imaginem num empilhador, no qual um homem basta, os sindicatos impunham 4 manobradores. O que acontecia ? Bruxo, 3 íam-se embora, os tais do CCTPL e o homem da Socarpor é que garantia o trabalho. Mas a factura era vezes 4, a que se somavam as chefias – o encarregado, o encarregado-geral e o  superintendente.
Isto, claro, dava um grande poder “negocial” ás hierarquias portuárias e sobretudo aos dirigentes sindicais. Aliás a forma mais rápida de se ascender profissionalmente era conseguir ser dirigente sindical. Se na Direcção do Sindicato (fosse da Estiva, Trafego ou Conferentes) alguém fosse trabalhador base  numa qualquer empresa, no final de mandato tinha garantida a promoção ao posto seguinte, e até se lhe dava a possibilidade de escolher outra empresa para ser colocado. Era assim uma espécie de comissão de serviço pela qual muitos militares ascenderem nas respectivas carreiras, aquando da guerra colonial.
O meu pai de manobrador base, foi tanto quanto sei, o único encarregado eleito pelos seus pares, que lhe reconheciam qualidades ímpares na arte de pilotar um empilhador, e garanto que ter conhecimentos de física é da maior importância, ainda que adquiridos no “metier” “on the Job”. Era habitual dizerem-me que o Dias era o melhor do porto em cima de uma máquina.
Mais tarde haveria de ser promovido a Encarregado-Geral, não porque o ambicionasse, mas porque o Presidente do Sindicato do Tráfego, o impôs pessoalmente á administração da Socarpor, que teimava em não ter aquela categoria pese embora dispor de vários encarregados, tornando-se necessário um Encarregado-Geral.
Mas se como manobrador ele era um “primus inter pares” no comando ou chefia da sua equipa de manobradores e encarregados, era de uma visão aguçadíssima. Tinha uma habilidade natural de comando. Muitas vezes disse para comigo que se o meu pai tivesse a minha formação, teria chegado ainda mais longe. Infelizmente não herdei essa sua capacidade de comando. Reconheço-o. Só não chegou a Superintendente (topo de carreira) porque não quis. Assim como sempre recusou fazer parte da direcção do sindicato.
Os portuários eram uma classe fechada, como o são hoje algumas profissões (os CTT, os Bancos, sectores da administração pública, etc). Só os filhos de portuários eram admitidos na profissão.
Mas eu quando fui trabalhar para o porto de Lisboa (SONATRA) … não fui para portuário. Ingressei na classe da “ferrugem”. Fui trabalhar na oficina da empresa como aprendiz de mecânico. O aprendiz, numa oficina, não é aquele que “aprende” o ofício. Não. É aquela “coisa” a quem cabe em exclusivo limpar a oficina e deixa-la a brilhar, e garantir que as ferramentas utilizadas pelos oficiais mecânicos estão higienicamente imaculadas.
Dava no duro durante o dia. Exalava um forte odor a gasóleo (as lavagens, de peças de motores e ferramentas são todas feitas com este combustível, e cheguei até a ver um colega que limpava as feridas com gasóleo), o meu fato macaco cheio de óleo e produtos afins, o que representava uma vantagem na hora de me aproximar do bar da empresa pois á aproximação do pessoal da ferrugem, logo se abria uma clareira ao balcão. Estudava á noite, e mal conseguia disfarçar os dedos de mecânico, e a pele das mãos gretada pelo produto lava mãos que removia tudo e mais alguma coisa.
Como aprendiz de mecânico uma das minhas funções, logo pela manhã era preparar a carrinha da manutenção, que haveria de percorrer todo o porto de Lisboa desde Alcântara, onde a empresa tinha a sua sede, até ao Parque de contentores de Beirolas, situado onde hoje é o Parque das Nações. A primeira paragem o ti Armando, o meu Mestre, fazia-a no quioske de Santos. Lá ía um caldinho quente (um copo três com metade de aguardente e metade de café de saco a ferver). Aquilo viciava. Aquecia a alma. Mais á frente no terminal de contentores de Santa Apolónia o ti Armando parava a carrinha para meter conversa com uma “amiga” de longa data e apresentava-me “este é o meu aprendiz, hã!” e ela “óh filho já vais ás putas ?” e eu “não que a minha mãe não deixa”, e ela “fazes bem filho qu’élas são umas poorcas”. O ti Armando tinha sempre histórias de vida que eu bebia com interesse. Era um manhoso, no bom sentido, com muita rodagem.
Cheguei a oficial de 3ª como mecânico, mas aquilo não era mesmo a minha praia, e nunca tive hipótese de ser portuário.
Os portuários eram demasiados, e por isso houve uma enorme operação a que se chamou “Licenciamento de portuários” que consistiu numa legislação especial que permitiu a muitos reformarem-se com boas reformas. Ainda me recordo do meu grande amigo Inácio conferente, que com 45 anos se viu reformado. Isto foi em 1991.
Só para se ter uma ideia a factura do transporte marítimo engrossa dado o número de intermediários que existe entre o momento em que a carga embarca e o momento em que chega a casa do cliente.
Numa operação deste género temos o Armador do Navio (o dono da embarcação), a Agência de Navegação (empresa que contrata o frete do navio e as rotas, e trata de toda a parte logística, seguros, etc), o Transitário (empresa que transporta a carga pela rede viária de e para o cais), o Operador portuário (empresa que carrega e descarrega um navio), a APL (Administração do Porto, empresa pública que tem o exclusivo da operação de gruas de grande tonelagem), a alfândega (braço do ministério das finanças que cuida da aplicação de taxas fiscais e outras e autoriza a saída da mercadoria), o despachante oficial que trata da papelada relativa ao leantamento da mercadoria, a policia marítima (garante os poderes de policia a bordo aquando das cargas e descargas), a GNR (antes era a guarda fiscal que garantia poderes de policia e fiscalização em terra), se fosse o caso de haver desconsolidação (esvaziamento de contentor no cais) entrava em cena outro operador portuário (Listrafego), e se a operação envolvesse a deslocação de empilhadores para e de outros cais havia ainda a considerar a PSP (a quem competia acompanhar o empilhador pelo trânsito da cidade). Claro aqui também entra o CCTPL (centro coordenador de trabalho do porto de Lisboa) fornecedora de pessoal extra-quadro que completavam as equipas dos operadores de estiva e trafego, o ITP (Instituto do Trabalho Portuário). Depois temos os rebocadores (pequenos barcos muito potentes, que rebocam os navios desde o momento em que entram na barra de Lisboa até á respectiva acostagem. Assim, de repente, ocorrem-me estes 14 intermediários nas operações portuárias. Claro que a factura é colossal.
Hoje os Dockers, que é um termo mais amplo que estivador, e engloba as 3 classes portuárias, de resto os sindicatos portuários portugueses fundiram-se num só, exibem a sua força, com apoio dos colegas de outros países (e essa é uma solidariedade efectiva), e o governo português expôs o seu desconhecimento de facto da realidade portuária, e permitiu-se ignorar esta gente num assunto que lhes diz respeito.
O meu vaticínio é uma derrota em toda a linha neste braço de ferro. Quando alguém quer ir ao pote do mel tem de perguntar ao urso se o pode fazer. O urso não está com meias medidas e quando tem de usar a força usa-a e o adversário nem sempre acaba como a lenda de D. Dinis – são e salvo.
Eu … bem, eu gostava muito de poder dizer I’am a Docker, mas não posso, embora me sinta como tal. Foram 15 anos numa vida dura, mas feliz, e afinal sou filho de um Docker. Com orgulho.
Oliveira Dias, ex-homem da ferrugem

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