9 de dezembro de 2012

Há mulheres no cais

Mas poucas. A estiva em Portugal são eles. Entre os cerca de mil estivadores portugueses, existem apenas 14 mulheres. Dez em Setúbal e quatro em Sines. Quase todas precárias. Juntam-se à luta dos homens e dos efetivos, mas têm uma muito maior para vencer. Margarida Pereira, Isabel Lucas e Alena Ivanova contam como é.
São nove e meia de uma manhã de sol gelado e ao terminal da Sadoport, em Setúbal, vão chegando homens que daqui a umas horas rumarão a Lisboa, para a manifestação internacional de estivadores, onde se distribuirão geribérias às mulheres que passam, se rebentarão petardos e se gritarão palavras de ordem como «Somos nós, somos nós, a estiva em Portugal somos nós»; «Cinco mil euros ganha a tua mãe, cinco mil euros ganha a tua mãe» e outras não reproduzíveis numa revista de domingo como a nossa. Milhares de homens em luta contra a precarização e pela manutenção dos postos de trabalho que consideram ameaçados pela nova lei que regulará o trabalho portuário e que será aprovada na Assembleia da República, apesar da contestação, das greves sucessivas e desta grande manifestação que para lá convergirá ordeiramente. Milhares de homens e uma mulher, Margarida Pereira, estivadora há 13 anos.
Nós encontramo-la, antes, no bar pré-fabricado do terminal da Sadoport, com Isabel Lucas e Alena Ivanova, colegas de estiva. Das três, é a única que vai à manifestação. Isabel tem uma consulta médica a que não pode faltar e Alena diz, em jeito de brincadeira, que já levou muita «porrada», não quer levar mais. Adiante na conversa, Margarida, precária como todas as colegas mulheres a trabalhar no porto de Setúbal, ganhando ao turno, com contratos ao dia, há-de reconhecer que a sua luta é outra, mais profunda, mas antes há que travar esta, porque, com a nova lei, a precariedade pode agravar-se ainda mais. E é por isso que se junta à contestação dos colegas efetivos.

Mãe de dois filhos, uma rapariga e um rapaz, Margarida Pereira, 43 anos, sorriso gaiato, olhos castanhos sombreados de verde e unhas pintadas de azul, trabalhava no apoio domiciliário da Santa Casa da Misericórdia de Setúbal quando uma colega, que foi das primeiras mulheres na estiva em Portugal, a desafiou a furar este mundo dominado pelos homens. «Trabalhávamos por turnos na Misericórdia e ela começou a incentivar-me para fazer um part-time na estiva. Eu tinha a minha filha pequenina, estava sozinha, já me tinha separado do pai dela, e precisava de ganhar mais algum, porque lá o ordenado era o mínimo. As inscrições para as ETP [Empresas de Trabalho Portuário] abriam de três em três meses e na altura a Naviport queria ser impulsionadora da presença de mulheres na estiva. Entrei, fiz formação de máquinas, testes psicotécnicos, exames de saúde e fiquei. Gostei tanto que aqui estou vai fazer 14 anos em abril.»
Um ano antes da entrada de Margarida, tinha chegado Isabel Lucas, 50 anos, para quem trabalhar entre homens não era novidade. De preparadora de pintura da Renault a operária numa fábrica de componentes automóveis ou a soldadora, fez de tudo, em empresas que tiveram sempre o mesmo fim: o encerramento. Desempregada e sem vocação para ficar fechada em casa, esta mulher grande, mãe de dois filhos e avó de um miúdo de cinco anos, fez-se estivadora há 14 anos. Hoje não se via a fazer outra coisa. «Há dias em que o trabalho é mais pesado, outros em que é mais leve, mas quando se faz aquilo de que se gosta, não custa nada», conta Isabel, que faz questão de relevar o seu lado feminino. «Gosto de fazer os meus arraiolos, gosto do trabalho da casa, gosto de tomar conta do neto e este trabalho permite-me isso». Aquilo que, segundo algumas vozes, é um dos fatores que mais afasta as mulheres da estiva - o horário por turnos -, é o que mais agrada à estivadora. «Posso trabalhar uma semana inteira, mas também posso estar uma semana em casa e isso dá-me liberdade. Quando tenho trabalho esqueço-me da família, da casa, de tudo, é tomar banho, comer e dormir. Quando não há trabalho e tenho mais vagar, então faço tudo o que deixei para trás e tenho tempo para mim. Uma coisa compensa a outra.»
Não está muito dentro da contestação e o que sabe é mais pelas notícias que vê e lê, mas acha muito bem que os efetivos lutem pelos seus direitos. «Nós estamos cá para os apoiar, porque a luta deles também é a nossa. A ver se não foge mais trabalho e se não põem a gente a trabalhar à hora.»
Alena Ivanova, 35 anos, faz que sim com a cabeça loura ao que diz a colega e amiga a quem trata por madrinha. («Eu estava cá sozinha e apareceu ela para me fazer companhia», diz Isabel num aparte.) Natural da Sibéria, esta educadora de infância chegou a Portugal em 2001. Sem nunca ter visto uma pá ou uma enxada, trabalhou sete anos numa empresa de jardinagem, mas cansada de cavar terra decidiu procurar um trabalho melhor. «Tentei arranjar emprego como vendedora numa loja, mas como já tinha 30 anos nenhuma me aceitava. Entretanto, soube da estiva, inscrevi-me e cá estou há três anos. Gosto muito e só espero que corra tudo bem, acabe esta greve e haja trabalho para toda a gente.»
Em Portugal, num universo de mais de mil homens, entre efetivos e «eventuais», existem 14 mulheres estivadoras. Dez em Setúbal e quatro em Sines. No porto alentejano ninguém se mostrou disponível para falar, mas sabe-se que três são efetivas, uma tem contrato a termo e foram ali criadas as infraestruturas de apoio necessárias para que o trabalho fosse aberto ao género feminino, nomeadamente os balneários e vestiários diferenciados, investimento que segundo Vítor Dias, presidente do Sindicato dos Estivadores do Centro e Sul de Portugal, mais nenhum porto ou operador portuário se dispôs a fazer até hoje no resto do país. «Seria interessante que existissem mais mulheres na estiva e hoje a profissão, que era associada a homens grandes e brutos, em virtude da sua evolução e da introdução das máquinas, é perfeitamente acessível às mulheres, mas as empresas é que não estão pelos ajustes e não querem fazer o investimento necessário para isso. Em Setúbal existem dez mulheres porque são todas eventuais. Vêm de casa com a roupa de trabalho e vão para casa com a roupa do trabalho. Mas Setúbal é uma realidade diferente.» Pois é. Dos estivadores a operar neste porto, para 51 efetivos, há 250 eventuais, um racio que ninguém consegue explicar muito bem e que Margarida Pereira, há 13 anos a ganhar ao turno e a assinar contratos diários, gostaria muito de perceber.
Salvaguardando que as empresas não podem ter quadros de pessoal que respondam a todas as necessidades porque o trabalho nos portos é irregular, o que justifica a existência de uma bolsa de eventuais, Vítor Dias considera que, dada a quantidade de horas extraordinárias que se exige aos estivadores, é óbvio que deviam ser muitos mais os efetivos e imputa às empresas e operadores portuários a responsabilidade de não os contratarem. Particularmente em Setúbal, garante que ao longo dos anos se lutou para alterar a situação, sem grandes resultados. «Este é o caso mais gritante e só é possível pela especificidade do trabalho no porto, cuja tipologia de carga não exige tanta especialização e que não tem tanta carga de linha regular como Lisboa, por exemplo. Para as empresas, quantos mais eventuais melhor, porque não têm encargos com os trabalhadores, mas é uma situação socialmente indigna, sobretudo numa atividade de risco como esta.»
Sim, hoje existem máquinas, mas a estiva não deixa de ser um trabalho muito duro, como conta Margarida Pereira. «Exige muito de nós física e psicologicamente. O trabalho em si, subir cargas, descer cargas, engatar, desengatar, é muito desgastante. Por exemplo, para engatar os pacotões do cimento temos que andar dobradas muitas horas. E depois, trabalhar 17 horas seguidas, como muitas vezes acontece, é complicado. Às vezes saimos daqui à 1 da manhã e temos que cá estar novamente às oito. É chegar a casa e dormir à pressa, como costumo dizer.»
Isabel Lucas confirma a dureza do trabalho e por isso para ela é essencial o espírito de equipa. Só assim se leva a carga a bom porto. E é fácil criar esse espírito quando se é uma mulher entre tantos homens? A estivadora garante que sim e isso é aliás aquilo que mais a ancora a esta profissão. «O relacionamento é muito bom, tanto com os colegas como com as chefias, nunca senti discriminação por ser mulher. Se tiver que ser chamada para fazer noites como os homens sou. O trabalho que eles fazem a gente também faz: conferência, cargas e descargas de navios, trabalho de base, tudo.»
Alena que se diz muito desenrascada, até gosta mais de trabalhar com homens do que com mulheres. «Gosto de ser igual aos homens e mostrar que não sou mais fraca. Não faço mais nem menos que eles. Quando me dizem "deixa que eu faço", respondo "não, tu ganhas o teu ordenado e eu ganho o meu, temos que fazer os dois". Nunca fico para trás, não gosto.»
Margarida lembra, no entanto, que nem sempre foi assim. Há 13 anos, quando entrou para a profissão, não é que fosse discriminada ou mal tratada, mas não foi exatamente fácil. «Estavam habituados àquele mundinho deles, eu posso, eu mando, alhos e bugalhos... Claro que com o tempo foram-se habituando a nós e hoje lidam connosco com muita normalidade. Em termos de linguagem continua a ser um bocadinho puxado e nós também tivemos que nos adaptar, mas se no início nem sequer nos atrevíamos a dizer fosse o que fosse, hoje já chamamos a atenção quando é preciso e eles pedem desculpa. Aliás, agora o que sentimos é até uma proteção por parte deles. Por exemplo, hoje vou à manifestação, mas muito protegida por eles.»
Com quase 15 anos de estiva, Isabel Lucas nunca se chocou muito com a linguagem, faz que não ouve e bola para a frente. Para ela, no local de trabalho não há homens e mulheres, há colegas. «Nunca senti que olhassem para a gente como mulheres ou como objecto sexual, nunca nos faltaram ao respeito e isso é o que importa.» Casada há 34 anos com o mesmo homem, «o que é raro nos tempos que correm», o seu trabalho também nunca foi um problema em casa. «Sempre trabalhei no meio de homens e o meu marido sempre aceitou muito bem o meu trabalho, mesmo os horários - porque aqui a gente nunca sabe se trabalha de dia, se trabalha de noite, se abala de casa às cinco da tarde e chega no outro dia às oito da manhã ou às oito da noite.»
Não era para os filhos de Margarida, Isabel e Alena a palavra de ordem gritada na manifestação. Nenhum deles tem uma mãe que ganhe 5000 euros por mês, nem pouco mais ou menos. A 48 euros ao turno de oito horas, que passam a 58 se houver repetição de turno, estas mulheres nunca sabem muito bem com o que contam. Convocadas por sms, umas horas antes de terem que se apresentar ao serviço, têm que estar sempre de prontidão, caso queriram continuar a ser chamadas. Todas afiançam que tanto podem ganhar 800 ou mil euros num mês muito bom como 200 ou 300 ou mesmo nada, se não houver trabalho. Subsídios de férias e Natal são coisa que não conhecem desde que trabalham na estiva e já nem direito a baixa médica têm, mesmo fazendo descontos sobre todos os turnos que fazem. Vale-lhes terem um suporte familiar de retaguarda - Margarida, o companheiro, Isabel, o marido, Alena, a mãe, que em 2006 veio trazer-lhe o filho mais velho, acabou por ficar e hoje trabalha no casino de Tróia. É com ela e os dois filhos, um rapaz e uma rapariga, que vive, desde que se separou do marido, português. «Se não fosse a minha mãe, se calhar não tinha saído de casa...»
Nos últimos tempos, em virtude das greves sucessivas, são mais os dias em que estão paradas do que aqueles em que trabalham, o que se vai tornando insustentável. Partilham dos receios de todos os estivadores portugueses, uma vez que a nova lei do trabalho portuário lhes retira muitas das funções que eram suas, o que levanta a Margarida uma série de questões, que deixa no ar: «nesta luta o que está em causa é que só para lá de determinada linha é que trabalha o estivador. E para cá dessa linha quem é que trabalha? Quem é que vai fazer os parqueamentos, os levantamentos, as receções? Se não é o estivador, quem é? E se eu trabalho para cá dessa linha, não me dirá a empresa que tem de me mandar embora porque não pode ter estivadores ali? Serão necessários todos os efetivos que existem para assegurar unicamente o trabalho para lá da linha?» Para concluir, reconhecendo: «A nossa luta não é a mesma dos efetivos, eles lutam para não perderem o que têm, nós lutamos para ganhar mais alguma coisa. Mas se esta lei for avante, perdemos todos, porque se eles forem para o desemprego ou para a situação de precários, para onde é que nós vamos?»
jn

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