Não queiras a fome a rondar a liberdade, pois podes matá-la (Suffit Kitab Akenat)
Ao longo dos meus sessenta anos tenho assistido a mudanças significativas de acontecimentos que, inesperadamente, modificaram o meu quotidiano e o de muitos outros.
Era eu um garoto quando populares angolanos enfrentaram com armas o poder colonial dando origem a uma guerra que parecia alastrar-se por toda a imensa Angola, onde nasci. Vivi a década de sessenta que nos transformou e nos fez crescer numa sociedade nova e multirracial, saudável e divertida, empenhada e com valores, sobretudo morais, porque os ideológicos e políticos só iríamos adquirir mais tarde.
Já mancebo fui incorporado no serviço militar, para viver uma guerra manchada com sangue, suor e lágrimas. Veio “o 25 de Abril de 74” e logo foi decretado o fim da guerra colonial. Um momento histórico marcante foi a participação da minha Companhia de Comandos no cessar-fogo, tendo escoltado o major Pezarat Correia e outros oficiais. Felizmente que a coisa correu bem e no fim eram só abraços comovidos.
No tempo em que a política mudava da noite para o dia, de nada valeram documentos e assinaturas pois os signatários seguiram destinos diferentes, pegando em armas, para uns e outros lutarem pelo seu quintal e pela sua dama, deixando rastos de sangue e de destruição com população inocente em debandada.
De desinstalado passei a morar na tranquila cidade de Ponta Delgada onde me lembro das bandeiras azuis da FLA, cujos correligionários impediam a abertura de sedes partidárias da malta de esquerda e até esbofeteavam dirigentes do PS.
Hoje acompanho com menos fervor a política e os políticos da nossa praça (não sou imune ao desencanto geral). Vejo desvanecerem-se os ideais que há trinta anos atrás eram motores das minhas crenças e opções políticas e com os quais defendia a minha bandeira, o espaço e a liberdade democráticos. Defendia também a implementação das leis laborais, denunciando os incumprimentos e as arbitrariedades. Belos esses longínquos anos de luta sindical.
Como a democracia para mim foi uma alvorada que me trouxe uma luz diferente das coisas e da vida, não gostaria de a ver, agora, destruída e, na melhor das hipóteses, adiada. Para isso, vou apoiar iniciativas que nos motivem para um novo despertar e para a defesa de valores humanos, sociais e políticos, sem os quais ninguém pode viver. Não quero assistir à presença ou documentários que retratem a fome e a miséria, que podem já ter atravessado as fronteiras de Portugal para cá ficarem instaladas.
Estou apreensivo e não quero ficar indiferente ou anestesiado. Pertenço a uma associação sindical que tem história, tem gente capaz e tem meios materiais. É preciso reunir a malta e desenvolvermos um diálogo construtivo para erguermos um edifício ou uma fábrica da consolidação, da luta contra a ignorância e dos falsos medos, da solidariedade e da convicção que podemos defender melhora nossa individualidade através da força do colectivo.
Saudações do 44+Cem.
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